Não entendo a saudade
neste cavalo chamado tempo.
Deito-me
sob mármore cru,
petrificando o meu corpo
numa nudez quase imunda.
Sou carne de homem
de mulher,
vitupério sacramental.
Sinto frio
daquele amor
disperso nas folhas secas
da minha crença.
Não entendo a saudade
da saudade que já não sinto
Quero ser assim
tal como sou,
a indiferença dos diferenciados.
CONCEIÇÃO BERNARDINO
- Publicado n' O DESTAK 15 de Dezembro 2008
2 comentários:
O tempo
sujo
Há dias que eu odeio
Como insultos a que não posso responder
Sem o perigo duma cruel intimidade
Com a mão que lança o pus
Que trabalha ao serviço da infecção
São dias que nunca deviam ter saído
Do mau tempo fixo
Que nos desafia da parede
Dias que nos insultam que nos lançam
As pedras do medo os vidros da mentira
As pequenas moedas da humilhação
Dias ou janelas sobre o charco
Que se espelha no céu
Dias do dia-a-dia
Comboios que trazem o sono a resmungara para o trabalho
O sono centenário
Mal vestido mal alimentado
Para o trabalho
A martelada na cabeça
A pequena morte maliciosa
Que na espiral das sirenes
Se esconde e assobia
Dias que passei no esgoto dos sonhos
Onde o sórdido dá as mãos ao sublime
Onde vi o necessário onde aprendi
Que só entre os homens e por eles
Vale a pena sonhar.
Alexandre O'Neill
Morbidez
Encontrei-te outra vez
triste e sombria
correndo solitária e cruel
nos áridos campos do cinza.
Encontramo-nos na destimidez
dos teus passos gélidos
tingidos de fel
a confundirem-se na traça
com os anjos da noite.
Encontrei-te morbidez
uivando verdades e volúpia
ao ritmo irreprimível
das outonias rajadas de vento
a volatilizarem célula após célula.
Encontramo-nos sobre a palidez
tenebrosa e jovem
em boda só compatível
de celebração na crueldade
de teu frio tumular.
Encontrei-te morte
e não era ainda minha vez.
Beatriz Alcântara
Carne e Alma
Contrai o espaço informe
ante o encontrar de vistas;
desperta aquela que dorme,
indica o vero e dá pistas.
Reprimida por vãos simulacros
ruge ferina a paixão liberta;
estertora contra motivos sacros;
transpõe altiva a jaula aberta.
Urge ao abraço do gozo insano,
Reclamando o que se perdeu outrora.
Quer o desfrute do que é humano;
exige a nudez da alma, agora!
E chega o desejo ao cúmulo:
O que brota borbulha, extrapola;
vasa em força que abate o êmulo;
permanece o fruto que não se imola.
Alexandre S. Santos
Muito bem-haja
VIPUTÉRIOS
OS LUSÍADAS
"Canto IV estâncias 94-104"
O Velho do Restelo- imprecação de
um ancião, enquanto a frota larga do
Restelo, contra os motivos que levam
os homens a desafiar o Longínquo (e
que talvez represente um dos pontos
de vista contraditórios que se debatem
no próprio Camões).
94- Mas um velho, de aspecto venerando,
que ficava nas praias, entre a gente,
postos em nós os olhos, meneando
três vezes a cabeça, descontente,
a voz pesada um pouco alevantando,
que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
tais palavras tirou do experto peito:
experto- experiente.
95- "Ó glória de mandar, ó vã cobiça
desta vaidade a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
c'ua aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
que crueldades nele experimentas!"
vão- vaidoso.
96- "Dura inquietação da alma e da vida
fonte de desamparos e adultérios,
sagaz consumidora conhecida
de fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
sendo digna de infames vitupérios;
chamam-te Fama e Glória Soberana,
nomes com quem se o povo néscio engana!"
fazendas- bens; vitupérios- insultos;
se- sujeito indefinido, equivalente ao françês
"on" (com quem se o povo engana= com que
se engana o povo); néscio- ignorante.
97- "A que novos desastres determinas
de levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
d' ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?"
palmas- recompensas (na Grécia e na Roma
Antiga, a palma era o prémio do vencedor).
100-"Não tens junto contigo o Ismaelita,
com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
se queres por vitórias ser louvado?"
o Ismaelita- os Mouros; o Arábio- Maomé
(natural da Arábia); lei- religião; (é) por
armas esforçado- é bom combatente
101-"Deixas criar às portas o inimigo,
por ires buscar outro de tão longe,
por quem se despovoe o Reino antigo,
se enfraqueça e se vá deitando a longe;
buscas o incerto e incógnito perigo
por que a Fama te exalte e te lisonje
chamando-te senhor, com larga cópia,
da Índia, Pérsia, Arábia e da Etiópia."
o Reino antigo- Portugal europeu;
se vá deitando a longe- se vá deitando a
perder; chamando-te senhor, com larga
cópia- chamando-te repetidamente "senhor".
102-"Oh, maldito o primeiro que, no mundo,
nas ondas vela pôs em seco lenho!
Digno da eterna pena do Profundo,
se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
nem cítara sonora ou vivo engenho
te dê por isso fama nem memória,
mas contigo se acabe o nome e glória!"
(maldito o primeiro que) nas ondas vela pôs
em seco lenho- maldito o inventor do navio;
Profundo- Inferno; (Nunca) cítara sonora ou
vivo engenho (te dê, etc...)- que nunca sejas
cantado pelos poetas.
103-"Trouxe o filho de Jápeto do Céu
o fogo que ajuntou ao peito humano,
fogo que o mundo em armas acendeu,
em mortes, em desonras (grande engano!).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
e quanto para o mundo menos dano,
que a tua estátua ilustre não tivera
fogo de altos desejos, que a movera!"
filho de Jápeto- Prometeu, que segundo
a mitologia clássica, roubou o fogo
sagrado do Olimpo e com ele animou
uma estátua de barro (a estátua ilustre),
dando, assim, origem ao Homem.
104-"Não cometera o moço miserando
o carro alto do pai, nem o ar vazio
o grande arquitector co filho, dando
um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando
por fogo, ferro, água, calma e frio,
deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte! Estranha condição!"
Não cometera o moço miserando
o carro alto do pai- referência a
Phaeton que roubou o carro do Sol;
nem o ar vazio o grande arquitector
co filho- referência a Dédalo, construtor
do labirinto de Creta, que, com o filho
Ícaro, fugiu dele construindo asas com
que voaram ao céu; dando um, nome
ao mar, e o outro, fama ao rio- Ícaro
caíu no Mar Egeu (também chamado
"Icário") e Phaeton caíu no rio Pó.
Um bem haja
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